sábado, 22 de agosto de 2009

Água- Metafóra de Vida e Morte

O mais precioso dos
líquidos vira metáfora de vida e morte; Brasil
se debate entre paraíso e inferno hídrico
Por Liana Melo


O mais antigo dos filósofos gregos, Tales de Mileto,
não deixou nada escrito. Do seu pensamento, só res-
taram interpretações. A principal delas é a de que tudo
se origina da água. A síntese da sua cosmologia do Uni-
verso é mais ou menos a seguinte: a Terra flutua sobre
a água, que é a causa material de todas as coisas. Nos
tempos atuais e especialmente hoje, Dia Mundial da
Água, essa combinação química de hidrogênio e oxigê-
nio, exaltada por Mileto nos anos 585 a.C., virou metá-
fora de vida e morte. De um recurso natural inesgotá-
vel, passou à categoria de um bem escasso, a ponto de
as Nações Unidas o definirem como uma provável cau-
sa de guerras no futuro deste século. Para alguns, o Bra-
sil pode até aparecer bem na foto, porque é superdo-
tado em recursos hídricos. Só que para os 20% mais po-
bres da população brasileira que não têm água limpa
saindo das torneiras e convivem com seus filhos me-
nores morrendo de diarréia, a imagem de um paraíso
tropical está meio fora de foco. Desde que tomou pos-
se, no primeiro e também neste segundo mandato, o
presidente Lula prometeu bilhões de reais para mitigar
o problema. Até agora, os gastos com o saneamento
ambiental urbano e rural não passaram de retórica. A
transposição do São Francisco parece concentrar mais
atenção do que o risco iminente de o semiárido brasi-
leiro virar um deserto, caso nada seja feito a tempo para
deter o processo acelerado de desertificação. Ainda que
seja dono de 12% da água do mundo, a distribuição no
Brasil é desigual e irregular. Durante a última semana, a
água concentrou as atenções em Istambul, na Turquia,
no 5º Forum Mundial da Água, onde o Brasil foi o centro
das atenções devido à generosidade da sua natureza.

BERÇO ‘EX-PLÊNDIDO’
Se tamanho fosse documento, o Brasil
poderia deitar-se em berço esplêndido.
Nossos rios, lagos e lagoas dão ao
país a confortável posição de dono da
maior reserva de água do mundo.
É uma situação invejável,
considerando que até os países ricos já
começaram a sentir sede, porque é
gente demais nos Estados Unidos, na
Espanha, no Japão, mundo afora, enfim,
para água de menos. Vai longe o tempo
em que falta de água era uma anomalia
exclusiva de país pobre.
Em 2005, cerca de 2,8 bilhões de
pessoas viviam em áreas onde o
consumo de água excedia em 40% a
capacidade dos recursos disponíveis.
Esse número poderá chegar a 3,9
bilhões em 2030 caso políticas mais
eficientes não sejam adotadas de imediato.

FATO CONSUMIDO

Apenas 3% de toda água disponível na
superfície da Terra são aptas ao consumo.
De toda a água do planeta, 97% dela é
salgada demais para ser consumida.

‘HIDROCÍDIO’

Dos 1,1 bilhão de pessoas, ou um
sexto da população mundial, sem acesso
a água potável, as Nações Unidas
calculam morram por dia cerca de seis
mil pessoas por doenças ligadas ao
consumo de água contaminada.

O SERTÃO VAI...

Não são apenas os indicadores sociais
que fazem do Brasil um país desigual. A
distribuição de água também não é
democrática.
O saneamento básico chega a apenas
51,3% dos lares brasileiros.
Foi só em 2007 que o país superou
pouco mais da metade do número de lares
com acesso à rede coletora de esgoto.
O semiárido nordestino, combalido e
seco por natureza, já está no Atlas
Mundial da Desertificação, feito pelo
Programa das Nações Unidas para o
Meio Ambiente.
Se os cientistas estiverem certos ao
identificarem o Nordeste e parte do
norte de Minas Gerais como áreas
suscetíveis à desertificação, teremos que
concordar que, talvez, as premonições
de Antônio Conselheiro estivessem
corretas: “O sertão vai virar mar e o mar
vai virar sertão”.



2 + 2 = 5

Foi somando as estatísticas com o
aquecimento global que o Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente
chegou à triste conclusão, no final de
2008, de que já superou a barreira de um
bilhão o número de pessoas que sofre
com a escassez de água mundo afora.
“O mundo evoluiu rapidamente, às
vezes de forma brutal, e essas mudanças
afetam dramaticamente os recursos
hídricos. Cada dia nos falta mais água
para criar energia e para dar de beber às
megalópoles”.
O alerta é do francês Loïc Fauchon,
presidente do Conselho Mundial da
Água, que organizou o 5º Fórum Mundial
da Água, que acontece esses dias em
Istambul, Turquia.




GULLAR, O ECÓLOGO

Ferreira Gullar estreou na poesia há 60
anos e, se outrora dedicou sua escrita a
temas sociais e ao engajamento político,
hoje é partidário de uma poesia cada
vez mais transcendente.
No cotidiano do poeta, contudo, resta
pelo menos uma bandeira:
— Sou um militante ecológico. Desligo
a torneira ao me ensaboar e ao escovar
os dentes — declara, por telefone, o
poeta maranhense, que em seu
monumental “Poema Sujo” (1975),
escrito no exílio, traz à tona da memória
os banhos de menino no rio Anil.
O consumo excessivo e o desperdício
estão, para ele, na matriz dos
problemas da sociedade contemporânea.
— Ela está alicerçada sobre o tripé
“comprar, gastar, sujar”.



A PESTE BRASILEIRA

O Ministério da Saúde no Brasil já
catalogou mais de 250 tipos de doenças
transmitidas por alimentos e a maioria
das chamadas DTAs é causada no país
pela ingestão de alimentos ou bebidas
contaminadas, incluindo aí água suja.
São bactérias, vírus e parasitas que
ficam à espreita e atacam,
preferencialmente, as crianças, que, no
mundo todo, são as principais vítimas.
Do total de doentes no Brasil, 3,9%
eram, entre 1999 e 2008, menores de um
ano de idade; 21,8% tinham entre 1 e 4
anos; 13,5%, de 5 a 9 anos; 19,3%, de 10
a 19 anos; 32%, de 20 a 49 anos e 9,3%
em pessoas com mais de 50 anos.
B0NDER E O PET-ÉDEN
Foi um choque a visão dos rios
Eufrates e Tigre para o rabino e
sociólogo Nilton Bonder:
— Um dos maiores desafios da
modernidade é aprender a compartilhar
o uso da água.
Ao refazer os caminhos de Abraão, ele
constatou que estes rios míticos, que
foram o berço da civilização, viraram
depósitos de lixo.
Garrafas PET, de diferentes formas,
cores e tamanho, bóiam impunemente,
comprovando o total descaso da cultura
descartável com o meio ambiente.

SOMOS ARQUIVILÕES

A poluição industrial deixou de ser o
único arquivilão da história, por sofrer
uma fiscalização mais rigorosa. O maior
problema hoje é a poluição doméstica: 2
milhões de toneladas de lixo são
lançados em cursos d’água todos os dias
no mundo. Quanto aos efluentes
industriais, 70% são lançados sem
tratamento adequado nas águas.



SP: O RIO MORTO

As águas negras e fétidas dos rios
Tietê e Pinheiros, em São Paulo, foram
enquadradas nas lentes da cineasta Lucy
Barreto. “Águas do Brasil” é seu próximo
documentário, que começa a ser rodado
em maio.
A agonia destes rios traduz com
perfeição o tipo de relação que o
brasileiro tem com o mais precioso dos
líquidos. Só o Tietê é castigado todos os
dias com 690 toneladas de esgoto.

ÁGUA DE BEBER

Enquanto cada europeu consome
diariamente, em média, 110 litros de
água, entre os mais miseráveis no
mundo mais de um bilhão de pessoas
não têm acesso à quantidade mínima de
água prescrita pelas Nações Unidas,
entre 20 e 50 litros.

FLORESTA NA PRESSÃO

No Brasil 84% da energia vem da
hidreletricidade. Novas usinas estão na
fila, o que aumenta a pressão sobre a
floresta, onde se encontram os rios mais
caudalosos.

FORNO DE PATATIVA

Patativa do Assaré cantou em prosa e
verso os problemas da modernidade
numa linguagem simples, mas não
simplória, e resumiu o poder da água em
tempos de seca:
“A grama no campo não nasce, não cresce
Outrora este campo tão verde e tão rico
Agora é tão quente que até nos parece
Um forno queimando madeira no angico...”

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